Visões
Espelho, espelho meu!
Fabiana Fator Gouvea Bonilha, fevereiro de 2006
Texto publicado na Coluna Ponto de Vista, Jornal Diário Braille, Fevereiro de 2006
Na edição de 29 de dezembro de 2005 do jornal Folha de São Paulo (Caderno Equilíbrio) a cronista Anna Verônica Mautner escreveu um texto muito interessante intitulado "Espelho: o inimigo que me vence com o tempo".
Na crônica, a autora aponta que o espelho é um instrumento revelador da nossa própria imagem, e através dele nós nos vemos cada vez mais envelhecidos. Segundo o texto, a constatação do envelhecimento causa desconforto, sobretudo porque nos vemos gradativamente mais parecidos com nossos pais e avós.
Paralelamente, na edição de outubro do Diário Braille, foi publicada uma reportagem cujo título era: "A beleza além dos olhos", em que se enfocava a importância atribuída pelas pessoas com deficiência visual à vaidade e à boa aparência.
Quando tive contato com os dois textos, me ocorreu fazer um contraponto entre ambos, a partir do qual emergiram alguns questionamentos: Se os cuidados com a aparência envolvem aspectos puramente visuais, por que as pessoas cegas também se atentam a esse cuidado e se sentem bem quando zelam por isso? Se o espelho revela nossa própria imagem, quais instrumentos podem ser utilizados pelos cegos como substitutos dele? Como as pessoas com deficiência visual percebem o próprio envelhecimento, se não podem contar com o uso do espelho?
Talvez não haja respostas únicas e acabadas para essas questões, mas, ainda assim, podemos arriscar algumas hipóteses.
Devemos considerar que os aspectos ligados à aparência envolvem elementos culturais, e se transformam de um modo dinâmico. Há tendências que variam ao longo do tempo e que são determinadas por alguns fatores, como o apelo da mídia e as relações interpessoais.
Em cada época e cultura, são construídos ideais em torno da "boa aparência" e do "corpo perfeito". Ora, as pessoas com deficiência visual estão inseridas no mesmo contexto em que se inserem as pessoas videntes, e, portanto, são passíveis de incorporar os mesmos conceitos e significados adotados por elas. Dessa forma, as questões relativas à aparência acabam sendo igualmente importantes para todos os seres humanos, independentemente de suas deficiências.
Também é preciso compreender que o espelho não é o único modo através do qual assimilamos nossa aparência. Há recursos táteis e proprioceptivos que são freqüentemente utilizados pelos cegos nesse intuito. Essas ferramentas nos possibilitam o auto-conhecimento e nos informam nossas mudanças ao longo do tempo. Nossa aparência, portanto, transcende os aspectos ligados estritamente ao sentido da visão. Sua compreensão engloba uma variedade de sensações e implica no uso de nossa sensibilidade.
Além disso, deve-se considerar que o "outro" tem um papel muito importante na formação de nosso conceito estético. Talvez essa importância seja mais acentuada para aqueles que têm deficiência visual, que dependem de algumas informações dadas pelas pessoas de seu convívio.
Mas o ponto crucial a ser considerado quando se abordam as questões ligadas à aparência se refere à subjetividade. A construção da auto-imagem é resultado de uma interação complexa entre vários fatores, a partir da qual formulamos o conceito de "Quem nós somos segundo nós mesmos".
A escritora Anna Verônica Mautner pontua esse aspecto de um modo particularmente interessante: "A fotografia, o vídeo e o espelho não retratam a alma. Porque, na minha alma, aquela que vejo refletida ou retratada é uma maldade dos instrumentos. Eu não sou aquela que vejo, eu continuo sendo aquela imagem que escolhi. Aceito-me de olhos fechados."